Os seres humanos sempre procuraram explicar o mundo à sua volta e seu próprio mundo interior através de símbolos. Temos uma grande necessidade de classificar aquilo que percebemos em categorias de objectos e sensações através de alguns traços comuns. Assim é que sabemos que todos os cães são da mesma espécie, mesmo tendo características tão diferentes quanto as de um Pinscher e um Collie. Da mesma forma, associamos à nossa concepção de “cão” todos os traços de comportamento que observamos ou projetamos neles, como a fidelidade e a subserviência.
Do mesmo modo, podemos verificar que outros animais ou mesmo seres humanos também apresentam tais traços e, assim, a idéia de “cão” pode se tornar uma metáfora para um ser humano fiel e/ou subserviente. Ao compararmos um ser humano a um cão, não precisamos mais explicar que achamos que essa pessoa tem determinadas características que se assemelham às de um cão. Quando tais metáforas se incorporam a uma cultura, podemos chamá-las de símbolos, os quais, com o tempo, muitas vezes se afastam tanto dos processos que deram origem às metáforas, que não sabemos mais porque tal imagem foi escolhida.
Geralmente os símbolos agregam e comunicam muitas informações de uma maneira incrivelmente concentrada. Assim, são muito utilizados para transmitir mensagens subliminares que transcendem/completam as palavras (ou, no caso de animes e manga, os desenhos). Assim, vamos examinar algumas implicações do uso de números nos manga e animes.
Infelizmente (ou felizmente!) o assunto é vastíssimo e não vai ser possível fazer mais do que apenas aguçar a curiosidade sobre o tema, citando alguns exemplos de algumas séries mais conhecidas. Os números são alguns dos símbolos mais poderosos nas mais diversas culturas. Sempre lhes foi atribuído algo de mágico: muitas pessoas acreditam que o número 13 dá azar. Há especialistas que se dedicam inteiramente ao seu estudo. No entanto, como já mencionei, enquanto os símbolos podem ser universais, o seu significado varia de acordo com cada cultura e muitos efeitos perdem-se quando são apresentados a um público de uma cultura diferente. E como o significado dos símbolos não é uma ciência exacta e única e eu não sou ocultista ou numeróloga, talvez não concordem com algumas interpretações ou conheça outras para aqueles elementos que vou falar neste artigo.
Mas vamos ao que interessa!
Há muitos exemplos de números com grande significado no anime e no manga. Alguns são motivados por outros símbolos ou lendas, como por exemplo, os doze Cavaleiros de Ouro dos Cavaleiros do Zodíaco (um para cada signo do horóscopo ocidental). Mas, mesmo nos Cavaleiros, o que realmente importa são as aventuras de Seiya e seus companheiros, um óptimo exemplo de um dos números mais recorrentes em tais séries: o grupo de cinco heróis.
Os fãs de manga e anime já quase que podem reconhecer uma categoria de séries que poderiamos chamar de “cinco heróis e uma missão”. Poderíamos aqui listar vários deles: começando pelos próprios Cavaleiros, temos ainda Shurato (contando com Lakeshi), a equipe de Yuusuke durante o torneio de Yu Yu Hakusho, Sailor Moon, Samurai Troopers, Gundam Wing, Bakuretsu Hunter, Power Rangers, Changemen, Flashmen… Bem, podem completar a lista com vários outros nomes.
O importante é que quando há um grupo de heróis ou personagens principais, eles geralmente são cinco e não dois, seis, dez ou quinze – embora não haja apenas grupos de cinco, eles são, com certeza, a maioria. E há uma boa razão para isso.
CINCO: A União
O número cinco é formado pela união do primeiro número par (2) e do primeiro número ímpar (3) maior que um. Dessa forma, o número cinco representa a síntese e a união. O maior trunfo de tais grupos de personagens é seu “trabalho em equipa”, sua capacidade de agir como um só ser, ainda que cada um mantenha a sua individualidade e sua função dentro do grupo. Tal harmonia é a receita japonesa para alcançar o sucesso: esquecer o individualismo em favor do grupo, porém sem ignorar as diferenças próprias de cada indivíduo, suas habilidades e fraquezas, dando a cada um a oportunidade de actuar no grupo segundo suas forças (o que fica bem claro nos encontros e desencontros das crianças de Digimon, mesmo que não em um grupo de cinco).
Ainda sobre as possibilidades de divisão do número cinco, podemos considerá-lo como a união do número quatro (geralmente ligado à Terra e ao Homem) e do número um (a unidade, o número de Deus). Teremos assim a estrutura hierárquica do grupo: quatro personagens “de suporte” e um líder. O líder é claramente aquele que tem a maior força física e/ou moral, mas ele também tem a maior responsabilidade: a ele cabe zelar pela união e integridade do grupo, tomar as decisões e distribuir as tarefas e, se os louros da vitória são sempre atribuídos a ele, mesmo que os demais membros do grupo tenham colaborado, também lhe cabe a responsabilidade por eventuais erros e derrotas, mesmo que causados por outros. A hierarquia japonesa é rígida e implacável, mas também garante que cada um saiba exatamente o que fazer dentro de seus limites. A figura do líder é imprescindível para o bom funcionamento do grupo, o que só pode acontecer quando sua liderança é tacitamente reconhecida, geralmente após um período de conflitos durante o qual ele deve provar aos outros a sua capacidade de conduzir o grupo como um todo harmonioso.
O número cinco também é associado à figura do pentagrama, ou estrela de cinco pontas, que apresenta claramente uma base e um cume, simbolizando uma construção harmoniosa e dinâmica. A hierarquia interna dos grupos de cinco personagens também é bem expressa na figura do pentagrama: há o líder, o “cume” do pentagrama, e dois personagens de grande força que, apesar de menos poderosos do que o líder, basicamente se equivalem. Este dois, como os “braços” do pentagrama, apontam para direções opostas e geralmente auxiliam o líder diretamente em suas decisões, sendo que muitas vezes um actua como “conselheiro” e o outro como “oposição” ao líder. Essas direções discordantes fornecem ao líder vários pontos de vista, os quais vão permitir que ele escolha a acção mais adequada a cada situação, não como indivíduo, mas como o resultado de um esforço conjunto.
Finalmente, dois outros elementos formam a base. Esses dois personagens geralmente não questionam ou influenciam diretamente as decisões do líder, mas são importantes para dar força e estabilidade ao grupo. Estão sempre prontos a dar tudo de si para que os demais possam completar sua missão. Pensem em todos os grupos de cinco heróis dos animes e manga que conheçam, e encontrarão essa “divisão de tarefas” na maioria deles.
QUATRO: A Morte
Se o número cinco é associado aos heróis, o número quatro é perfeito para os grupos de antagonistas. Basta ver a coincidência do nome japonês para os quatro Generais da Rainha Beryl na primeira fase de Sailor Moon e dos quatro Mestres do Mal de Digimon (ambos os grupos se chamam Shitennou, o que pode ser traduzido como “os quatro reis celestiais”). Não é à toa que o grupo de elite do mal, a última barreira antes do inimigo final, seja formado por quatro indivíduos: em japonês, o número quatro é considerado de mau agouro, pois uma de suas pronúncias é shi, que também é a palavra para “morte” (o que permitiria uma leitura de shitennou como “os reis celestiais da morte”).
Assim, o número quatro é evitado na cultura japonesa (do mesmo modo que o 7 ou o 13 nas culturas ocidentais) e, como o número da morte, é usado para os personagens que se deliciam com ela (e vale notar que os quatro “generais” juntamente com o inimigo supremo formam novamente um grupo de cinco, mostrando que também os “maus” se organizam segundo as mesmas normas). É interessante ainda verificar que no caso do manga/anime Weiss Kreuz, tanto o grupo “do bem” (Weiss – ‘branco’ em alemão) como o grupo “do mal” (Schwarz – ‘preto’ em alemão) são formados por quatro elementos – e realmente não há grandes diferenças entre os dois grupos, já que ambos são assassinos agindo sob ordens de organizações secretas.
TRÊS: A Família
Um outro número que também é muito usado para os personagens principais é o três. Há vários exemplos de séries que têm um grupo de três heróis, como Magic Night Rayearth e Pokemon, ou de três personagens que se sobressaem dos demais, embora isso seja bem menos frequente que os grupos de cinco. O número três apresenta as mesmas vantagens do número cinco no que se refere à figura do líder e às referências a uma figura harmoniosa e estável (agora o triângulo e não mais o pentagrama). O três é considerado o número do divino, da união e da compleição e está ligado à comunicação e à espiritualidade.
Basta pensar nas trindades encontradas em várias religiões ou na figura básica da família, com o pai, a mãe e o fruto de sua união. Desse modo, os grupos de três apresentam uma cumplicidade maior entre seus membros e uma menor diferença em termos de força e posição na hierarquia. Os membros dos grupos de três heróis são geralmente amigos e, embora haja sempre um protagonista principal, ele não é necessariamente um líder coordenador do grupo, mas sim o elo que une os outros dois participantes.
SETE: A Busca
Não são muito comuns os grupos de sete personagens. É realmente muita gente para que se possa apresentar um perfil psicológico e uma habilidade específica para cada um, quanto mais interagir como um todo. Porém, actualmente temos um exemplo de um grupo assim em Digimon. Quando comecei a assistir ao anime, estranhei muito a abundância de personagens principais, mesmo que com um dos números mais poderosos. O número sete sempre esteve ligado ao mistério e à força. Alguns o consideram um número de azar, outros de sorte. De qualquer modo, o sete é um número importante e especialmente apropriado para os garotos de Digimon. E por quê?
O sete é, entre outras características, um número místico, da procura da verdade absoluta por trás das aparências e dos conceitos pré-estabelecidos. É relacionado à meditação, à busca do auto-conhecimento. Representa a missão de buscar o saber e a capacidade interior de cada um, que existem independentemente do mundo exterior. É a libertação das “muletas” que nos sustentam (no caso de Digimon, os “digivices” e os brasões, que são apenas instrumentos para catalizar a força interior de cada personagem), para que possamos caminhar com nossas próprias pernas.
Os sete personagens de Digimon, assim como os grupos de cinco personagens, também formam um grupo dinâmico no qual cada um tem suas qualidades e defeitos, e é dever de cada um deles conhecer-se e aprender a interagir com os demais, sem perder suas características próprias. O maior perigo de um grupo tão grande é uma frequente subdivisão em grupos menores e uma maior dificuldade para tomada das decisões. Frequentemente vemos os personagens se confrontando ou se isolando do grupo para reverem sua opinião de si mesmos e suas expectativas e reavaliarem suas fraquezas e potencialidades.
OITO: O Poder
Se o grupo de sete personagens já foi estranho para mim, qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o grupo ainda não estava completo e que havia um oitavo “digiescolhido”! Principalmente, achei estranho que eles se completassem formando um número par. Os numeros pares são geralmente considerados “fracos”, não tem um “cume” e por isso não são muito utilizados em mangás e animes. No entanto, ao examinarmos a simbologia do número oito, vemos que isso tem sua lógica.
O número oito pode ser entendido como o número daqueles que “têm o poder”. Após os questionamentos e a busca do auto-conhecimento simbolizados pelo número sete e bem ilustrados no anime pelo repetido isolamento dos personagens e sua eventual recusa a entrar em combate, o número oito representa o acto de “arregaçar as mangas” e agir para obter resultados. Sendo um número par, o oito não tem “cume”, é estável e sólido, meio pesado, até. Mas é essa estabilidade que leva o grupo a opor-se ao mal de forma organizada e coesa. Não mais importa quem é o líder, todos entendem sua responsabilidade e cada um já se conhece o bastante para colocar seu dom à serviço da missão do grupo: restaurar a ordem em ambos os universos.
A simbologia dos números, mesmo quando não estamos conscientes dela, activa em nós alguns conceitos básicos da maneira como vemos o mundo e dos padrões que orientam as acções das pessoas ao nosso redor. Utilizando esse conhecimento, os autores de manga e anime (assim como de todas as outras manifestações artísticas de qualquer sociedade/cultura) transmitem mais rapidamente as suas mensagens e fazem com que elas atinjam profundamente o público, criando grande identificação e envolvimento com as histórias.
Autor:Selma Meireles