Quem encara a produção de animação japonesa para televisão durante os últimos anos provavelmente deduzirá que os japoneses não conseguem resistir ao sentimento “feel-good” transmitido pelas animadas aventuras e comédias românticas que constituem, na esmagadora maioria, o conteúdo destas obras.
Mesmo uma onda mais “gótica” que terá surgido recentemente (“Hellsing”, “Witch Hunter Robin”) não escapa ao enquadramento numa onda de puro escapismo que apenas toca superficialmente questões que deveriam ser abordadas com mais frequência. A obra analizada neste artigo, se bem que caindo numa série de nichos a que o anime já nos habitua desde há muito tempo, é tudo menos típica do grosso da oferta da animação japonesa para consumo de massas: doentiamente trágica, é a melhor descrição que se pode oferecer a “Saishuu-Heiki Kanojo” (“Ela, a Arma Suprema”).
Contando com 13 episódios, “SaiKano”, como foi afectuosamente baptizada pelos seus fãs, é uma série de 2002 baseada num manga de 9 volumes da autoria de Takahashi Shin, e realizada pelo estúdio GONZO (“Blue Submarine #6”, “Gatekeepers”, “Vandread”).
“SaiKano” conta-nos a história de Shuuji e Chise, dois estudantes liceais numa pequena cidade japonesa que é um oásis num mundo em guerra total. Shuuji é um rapaz corpulento, duro e aparentemente antipático, mas na realidade é dono de uma franqueza cativante. Chise é uma rapariga gentil mas frágil e choramingas, com a mania de pedir desculpas por tudo e por nada. Podem parecer personagens banais, mas a sua força está na sua união, após o momento em que decidem tornar-se namorados.
Porém tudo muda no dia em Shuuji é apanhado por um bombardeamento. Fugindo por entre os destroços e os cadáveres, Shuuji vê algo que nunca iria esquecer: a figura de Chise, com asas metálicas saindo das costas e um braço totalmente transformado numa enorme arma. Chise é a arma suprema, com um potencial destrutivo insuperável, alterada pelo exército japonês como a última esperança para a vitória contra o invasor. E agora, Shuuji tem que viver com essa realidade, e ambos terão que decidir o que fazer com o seu amor em tempo de guerra.
Ficam prevenidos os que esperam, por esta descrição, por agitadas representações de combates de Chise utilizando os seus poderes, acompanhadas por efeitos especiais estonteantes. Na realidade, “SaiKano” é muito mais uma história de amor do que uma história de guerra, e sobretudo acerca do efeito do segundo sobre o primeiro, em todas as suas vertentes. Não faltam os famosos polígonos amorosos e confusões românticas, mas nesta obra, ao contrário de um qualquer “Ranma 1/2” ou “Love Hina”, quase todas essas situações são encenadas de forma trágica, com consequências nefastas para os sentimentos dos personagens.
Quanto à guerra, ela nunca é retratada de forma glamorosa ou heróica, mas sim do ponto de vista do cidadão comum ou do soldado “carne para canhão”: nada mais que um exercício vão de poder destrutivo sem qualquer respeito pela vida dos seres humanos envolvidos, resultando inevitavelmente em perda: de inocência, dos entes amados, e tão frequentemente da própria vida. O sentimento de fado, de inevitabilidade da tragédia é imposto ao espectador em crescendo durante toda a série, reforçando todos os sentimentos negativos associados à guerra de forma perturbadora, mas conseguindo suscitar o pensamento até depois do final. Nisto, “SaiKano” é um sucesso, se bem que o seu carácter fatalista possa revelar-se difícil de engolir para os fãs mais sensíveis ou menos tolerantes a emoções como a angústia e o medo.
Os designs dos personagens são extraídos directamente do manga, resultando num “look” muito característico e ao qual o espectador talvez demore um pouco a habituar-se. Porém, ultrapassada esta barreira, é possível admirar a excelente qualidade técnica da animação digital, à qual o estúdio GONZO já nos tinha habituado nas suas produções anteriores. Os desempenhos dos seiyuu’s são bons, com Orikasa Fumiko (Yuzuki em “Chobits”, Hikari em “Haibane Renmei”, Victoria em “Hellsing”) a realçar a vertente sofredora de Chise com efeitos por vezes angustiantes, e o estreante Ishimoda Shiro a conceder a dureza apropriada às expressões de Shuuji. O acompanhamento musical é adequado, se bem que não atinja nenhuns picos de grandeza.
Apesar de ter alguns defeitos ao nível da história, “Saishuu-Heiki Kanojo” é um anime a ver por todos quantos sabem que o anime pode ser mais do que uma forma de escapismo; E sobretudo, a mostrar a todos quantos insistem em ver beleza na tragédia da guerra. Ninguém deixará de ser tocado pela história de Shuuji e Chise, a qual mostra que, para além de todas as mortes, a primeira vítima da guerra é a inocência.
Autor: João Rocha