Lá por um autor de manga ser bom desenhista, isso não significa forçosamente que seja bom escritor. A boa literatura envolve um talento muito distinto do necessário para a ilustração. O público demasiadas vezes se esquece deste facto, e no caso em particular da manga – uma forma de expressão eminentemente visual – a qualidade da narrativa é demasiada vezes descurada, recaindo em fórmulas genéricas, que apesar de apelativas, já foram exploradas até à exaustão.
Sendo a maior parte dos animes produzidos hoje em dia derivados de obras de manga populares, é previsível que muitas das falácias inerentes a esta polivalência do autor sejam transportadas para a forma animada. Assim, perpetua-se o erro de menosprezar a importância do escritor no processo criativo da banda desenhada, afundando-se o público e os produtores de animação da cultura do estrelato por vezes desmerecido do escritor-desenhista. Aquela importância torna-se mais visível do que nunca quando se assiste a um dos escassos exemplos de anime adaptado directamente de um romance literário – trata-se aqui de “Seikai no Monshou” (“Crest of the Stars” ou “Brasão das Estrelas”), uma série de 13 episódios de 1999, produzida pelo estúdio Sunrise.
“Seikai no Monshou” é originalmente uma trilogia de romances da autoria de Morioka Hiroyuki, e que se tornaram incrivelmente populares no Japão, de tal forma que o primeiro volume foi reimpresso 3 vezes nos 2 meses após o seu lançamento em Abril de 1996. Ainda antes da adaptação para anime destes romances, o autor começou a escrever a sua sequela, uma nova trilogia intitulada “Seikai no Senki” (“Battleflag of the Stars” ou “Estandarte das Estrelas”) – a qual acabou por ser também adaptada para forma animada. Além das adaptações directas, existe um episódio especial para TV de “Seikai no Monshou” que retrata a infância de um dos protagonistas, e um OAV de 90 minutos que compila os 13 episódios da série mais o citado episódio especial.
“Seikai no Monshou” ilustra-nos um universo futurista em que a nossa galáxia foi colonizada pelos humanos, que se dividiram em várias facções. A maior e mais poderosa destas facções é o Império Humano dos Abh, uma orgulhosa hierarquia feudalista entronada por uma raça humana geneticamente alterada para adaptação às condições do espaço sideral. O princípio da série mostra-nos a invasão pelos Abh do planeta Martin, cujo presidente negoceia a paz a troco de um título de nobreza no seio dos Abh. Anos mais tarde, o seu filho, um rapaz chamado Jinto, parte para cumprir serviço militar na força espacial imperial, sendo acolhido por uma jovem Abh chamada Lafiel… sem saber que, na realidade, ela é uma princesa, neta da imperatriz!
Infelizmente, na sua primeira viagem pelas estrelas, Jinto é envolvido numa batalha espacial que resulta na sua fuga junto com Lafiel, assumindo agora a missão de avisar os Abh sobre a ameaça que se aproxima: um ataque conjunto de forças das outras facções humanas que invejam e cobiçam o poderio dos Abh. Assim, uma trama política e militar de dimensões galácticas desenrola-se, passando tanto pelas mãos dos dois jovens, como muito sobre as suas cabeças, no mais profundo do espaço sideral e nos corredores do palácio da imperatriz Abh…
Como seria de esperar pelas origens de “Seikai no Monshou”, os pontos fortes desta obra são a história e os diálogos. A mente de Morioka criou para este universo uma dinâmica descrita aos mínimos detalhes, desde a tecnologia utilizada para as viagens espaciais, até à língua dos Abh, passando pelo seu carácter forte, as suas relações com os mundos vassalos e a sua complexa estrutura nobiliárquica, que se reflecte nos seus longuíssimos nomes repletos de títulos. Para além disso, a trama não é forçada nem formulaica como em milhentas outras obras de anime, e os diálogos estão entre os mais estimulantes e inteligentes alguma vez escritos para animação. A diferença é tão evidente que o espectador sente as faltas de certas falas e reacções tão características de personagens de anime, mas que nunca teriam lugar no mundo real.
Por outro lado, é de realçar que, apesar da ênfase dada ao aspecto narrativo, o aspecto visual não foi descuidado. Os designs de personagens de Watabe Keisuke são simples mas apelativos, e os designs mecânicos são detalhados e baseados no extenso material de base. A qualidade da animação é compentente e serve bem a história – em vez do contrário suceder, como é habitual. As vozes dos personagens principais são bem atribuídas, destacando-se Imai Yuka (Otaru em “Saber Marionette J”, Wakaba em “Shoujo Kakumei Utena”) como o reticente Jinto, e Kawasumi Ayako (Ruriko em “Gatekeepers”, Mahoro em “Mahoromatic”) como a orgulhosa Lafiel. Merece ainda menção o inesquecível desempenho de Fukami Rika (Myung em “Macross Plus”) como a impagável Spoor. A banda sonora instrumental confere sentido épico à obra, contando com peças de Hattori Katsuhisa e Kondo Kingo.
A verdadeira ficção científica não será encontrada pelos fãs de anime em títulos como “Outlaw Star” ou “Lost Universe” – e nem mesmo nas fantasias mais plausíveis de “Gundam” ou “RahXephon”. Na tradição de Isaac Asimov e Robert Heinlein, “Seikai no Monshou” é uma excelente alternativa para quem deseja realismo máximo na sua ficção científica – mas sem desprezar uma pitada de humor, uma história extremamente detalhada e diálogos apaixonantes. Talvez apreciando esta obra, reconheça assim a importância de um escritor competente no processo criativo do anime e manga. Altamente recomendado.
Autor:João Rocha