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Shonen e Shoujo: Públicos-Alvo no Japão

É verdade que, em grande parte, os fãs de animação e banda desenhada japonesa são-no porque são capazes de discernir a qualidade artística das obras que apreciam. Mas a produção de animação e banda desenhada no Japão é, e há que admiti-lo, uma indústria feroz e competitiva em que um número alargado de produtores de obras lutam pelos corações e pelas carteiras de uma quantidade limitada de espectadores. E como qualquer indústria, esta é pautada por uma série de técnicas e convenções que procuram optimizar todos os passos do processo de produção – desde a concepção de uma obra até à sua entrega ao consumidor final – e mais além!

Uma das técnicas mais conhecidas neste âmbito é o marketing, a arte/técnica de simultaneamente dar o produto a conhecer a um potencial cliente e convencê-lo a adquiri-lo. Dentro desta área em particular, um conceito que merece destaque é o de público-alvo: um conjunto de pessoas em relação ao qual as qualidades do produto são optimizadas de forma a torná-lo mais atractivo para esse grupo em particular. A noção de público-alvo é conhecida em todos os tipos de arte popular: um artista que produz obras comerciais deve ter a noção, à partida, do grupo de pessoas mais susceptível de se interessar pela sua obra, e daí, tirar conclusões relativas à sua viabilidade.

Este conceito é assumido em pleno pela indústria de manga no Japão, e em muitos casos, levado ao extremo. Tanto que, no caso das obras mais comerciais, não é o artista que escolhe o público-alvo, mas este último que condiciona indirectamente o trabalho do artista. A existência das compilações semanais de manga é prova disso: elas possuem públicos-alvo bem específicos, como por exemplo o dos trabalhadores de escritório masculinos (“salary-men”) ou o das raparigas pré-adolescentes, e assim forçam a maior parte dos artistas que nelas aspirem a ser publicados a limitar-se a um conjunto restrito de temas e conceitos sabidos populares dentro desse segmento da população. Apenas um conjunto restrito de artistas especialmente populares e conceituados conseguem transcender os seus nichos e, dentro de certa medida, ditar as regras para as obras que criam.

A maior parte das obras de banda desenhada japonesa produzidas em forma impressa podem ser classificadas dentro de dois super-géneros bem definidos: shonen e shoujo. Quase todas as compilações de manga dedicam-se exclusivamente a um desses campos, embora seja natural que as editoras publiquem duas ou mais compilações semanais, de forma a abranger os públicos-alvo principais. Quem adquire uma dessas compilações sabe muito bem, à partida, aquilo que pode esperar: as jovens mulheres adultas gostam de histórias sobre jovens mulheres adultas que balanceiam uma carreira profissional com um romance. Os rapazes adolescentes preferem histórias de aventura repletas de acção e armas grandes. A maior parte dos nichos de mercado têm compilações que lhes são dedicadas, e os que são demasiado pequenos para o terem, são cobertos pela imensa comunidade de artistas amadores, os criadores de doujinshi.

O conceito de públicos-alvo em banda desenhada é algo que não se tem traduzido muito bem na Europa, porque na mente do consumidor médio europeu, apenas existe um público-alvo: as crianças. Na restrita comunidade de leitores de banda desenhada mais madura, o conceito também se torna um pouco alienígena, já que a este nível, os artistas assumem um controlo muito maior sobre a sua obra do que os seus colegas japoneses ou americanos. No mundo da banda desenhada europeia “erudita”, as obras não correspondem a necessidades do mercado, mas sim a pretensões artísticas dos seus criadores, o que as aproxima mais de artes respeitadas como a literatura ou a pintura, mas afasta-as do grande público.

Não é de admirar, por isso, que mesmo entre os fãs de manga europeus, exista uma compreensão bastante limitada do conceito de público-alvo e, por consequência, do significado das palavras “shonen” e “shoujo”. Certas pessoas parecem estar totalmente convencidas de que é uma classificação dada a artistas ou em função do género de história. O que não falta na “fandom” são supostos “connoisseurs” a afirmar de joelhos e mãos juntas que as Clamp apenas fazem shoujo, que “Angel Sanctuary” é shonen porque tem muita acção e mortes, e que “Aa! Megami-sama” é shoujo porque é uma história romântica. A fim de descontruir muitos mitos e proporcionar um melhor entendimento aos leitores sobre as características e distinção entre estes dois super-géneros, vamos analizar cada um destes casos.

Embora as Clamp tenham-se popularizado com obras shoujo como “RG Veda” e “Tokyo Babylon”, sejam exímias na representação de um dos mais marcantes elementos do manga shoujo (o chamado bishonen, ou rapaz bonito), e seja um grupo composto integralmente por mulheres, não se pode dizer que só façam shoujo. O exemplo mais berrante disto está em “Chobits”, um manga repleto de clichés de manga shonen, e que não pode ser classificado de nenhuma outra forma. A notoriedade das autoras faz com que elas tenham uma liberdade criativa bem maior do que a média, o que lhes permitiu em determinadas circunstâncias esbater um pouco a fronteira entre shonen e shoujo. “Angelic Layer” é um exemplo disto: apesar de possuir uma trama típica de shonen (a demanda por um troféu), a sua heroína feminina e a ausência de fan-service faz com que se incline um pouco para o lado do shoujo. A primeira lição é, então, a de não classificar um manga pelo seu autor. Apesar da maior parte dos autores estarem afectos a um determinado super-género, não significa que isso aconteça sempre, particularmente no caso dos artistas mais célebres. Melhor será analizar caso a caso.

Continuando a utilizar as Clamp como ponto de comparação, chegamos a “Angel Sanctuary” de Yuki Kaori – um caso que é perfeitamente paralelo a “X”, das Clamp. Sim, é verdade que ambas são obras épicas com elementos sobrenaturais, e acima de tudo com muita acção, mortes e sangue. Mas uma análise um pouco mais profunda marca a diferença: sem muito esforço, o leitor atento repara que ambos os títulos têm como protagonistas típicos bishonen andróginos, e que colocam uma ênfase exacerbada nas motivações, emoções e reacções dos personagens em detrimento de uma narrativa com um ritmo rápido. A lição a tirar? Não classificar um manga pela sua brutalidade ou pela abrangência da sua trama. Em vez disso, é melhor focar na forma como a narrativa é transmitida ao leitor, tentando deduzir o tipo de sensibilidade a que ela é dirigida.

No caso de “Aa! Megami-sama”, obra de Fujishima Kosuke, um paralelo pode ser traçado a títulos como “Tenchi Muyo”, “Love Hina” e outros do género. Apesar de serem claramente classificadas como comédias românticas (um género que no ocidente é associado a um público eminentemente feminino), que ponto comum reune todas estas obras? Muito simplesmente, todas elas têm como herói um rapaz com pouco jeito para lidar com o sexo oposto, que de repente se vê rodeado por um grupo de bonitas raparigas, todas elas pública ou secretamente com vontade de lhe saltar para a cueca. Ora, a quem acham que uma história deste género apela, homens ou mulheres?

Assim, a terceira lição é que não se deve classificar um manga pela quantidade de romance. É preferível analizar o efeito no público e as emoções que a narrativa suscita nele, e definir qual o segmento da população em que essas emoções se tornam mais excitantes e reconfortantes (em suma, positivas).

Esperamos que assim se dissipem um pouco mais as confusões sobre o que exactamente constitui shonen e shoujo – uma distinção que em última instância depende menos do conteúdo da obra do que dos cordelinhos que mexe nos públicos que atinge. Listamos abaixo algumas das características chave (clichés, se quiserem) que costumam caracterizar cada um destes super-géneros. No seu conjunto, estes pontos permitirão identificar 90% das obras de manga como shoujo ou shonen. Contudo, além das áreas cinzentas, existem sempre desafios às convenções, por isso convém analizar sempre caso a caso…

Elementos típicos de manga shonen:
– Ênfase na acção
– Ritmo narrativo rápido
– É gerada empatia com os personagens masculinos
– Sexualização das situações, quer de forma explícita ou implícita
– Personagens femininos seguem estereótipos que correspondem a objectos de desejo masculino
– “Fan Service”: exibição gratuita de características sexuais e pormenores fetichistas
– Predominância de temas tecnológicos (não são, porém, exclusivos do
shonen)

Elementos típicos de manga shoujo:
– Ênfase nas emoções e relações entre personagens.
– Ritmo narrativo relativamente lento
– Introspectivo: análise do impacto de acontecimentos externos nos personagens
– É gerada empatia com os personagens femininos
– Presença de bishonen e de personagens andróginos
– Sentimentalização das situações
– Dramatismo exacerbado
– Predominância de situações quotidianas (não são, porém, exclusivos do shoujo)


Autor:João Rocha

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